O cerco de Ezequias e as duas histórias da Bíblia: rendição ou milagre?

Introdução
No século VIII a.C., Jerusalém enfrentou um dos momentos mais críticos de sua história. O rei assírio Senaqueribe, senhor de um dos impérios mais poderosos da Antiguidade, avançou contra Judá e cercou Jerusalém. O pequeno reino parecia condenado.
Mas quando abrimos a Bíblia, encontramos não uma, mas duas versões diferentes desse mesmo episódio: numa, o rei Ezequias se rende e paga um tributo humilhante; noutra, Jerusalém é salva por um milagre espetacular.
E não para por aí: as inscrições do próprio Senaqueribe, preservadas em argila há quase 2.700 anos, oferecem ainda outra versão da mesma história. Como conciliar tudo isso? E o que as datas das redações revelam sobre a construção dessas narrativas?
A versão da rendição: Ezequias paga o preço
O livro de 2 Reis 18:13–16 não deixa dúvidas:
- No 14º ano de Ezequias, Senaqueribe invade Judá e conquista cidades fortificadas.
- Ezequias se rende e envia uma mensagem: “Pequei. Retira-te de mim, e o que me impuseres suportarei.”
- O preço é altíssimo: 300 talentos de prata e 30 de ouro.
- Até o ouro do templo de YHWH é arrancado das portas e entregue ao rei assírio.
Essa versão soa incômoda, mas historicamente plausível: o rei de Judá comprando a sobrevivência de Jerusalém com humilhação e submissão.
A versão do milagre: o anjo exterminador
Logo em seguida, em 2 Reis 18:17–19:37 (paralelo em Isaías 36–37), surge uma narrativa totalmente diferente:
- Senaqueribe envia mensageiros para zombar da fé de Ezequias.
- O profeta Isaías garante: Jerusalém não cairá.
- À noite, o “anjo de YHWH” abate 185 mil soldados assírios.
- Senaqueribe recua para Nínive, derrotado.
Nessa releitura, não há tributo. O herói é YHWH, o Deus que protege Sião. O tom já não é histórico, mas teológico: a cidade escolhida é invencível.
Crônicas: a versão heroica
Séculos depois, quando o judaísmo pós-exílico buscava reafirmar sua identidade, o livro de 2 Crônicas 32 recontou a história.
- O episódio da rendição de Ezequias? Silêncio total.
- O foco está apenas na oração do rei e na vitória milagrosa concedida por YHWH.
Tudo que poderia soar vergonhoso foi apagado. A narrativa é propaganda religiosa, projetando um ideal: confiar em Deus sempre leva à vitória.
O registro assírio: “como um pássaro numa gaiola”
Do outro lado da história, temos os anais oficiais de Senaqueribe, gravados em prismas de argila por volta de 691 a.C.. Ali, o rei assírio se gaba:
- Conquistou 46 cidades de Judá.
- Deixou Ezequias “aprisionado como um pássaro numa gaiola” em Jerusalém.
- Recebeu tributos: ouro, prata, pedras preciosas, marfim, músicos, mulheres do palácio.
Mas há um detalhe revelador: Senaqueribe não afirma ter conquistado Jerusalém. Ele parou no cerco — exatamente como a arqueologia confirma.
Comparação das versões
Fonte | Conteúdo principal | Data provável de redação | Intenção teológica/política |
---|---|---|---|
2 Reis 18:13–16 | Ezequias se rende e paga tributo (ouro e prata do templo). | Redação deuteronomista (exílio babilônico, séc. VI a.C.) | Mostrar que até reis fiéis sofrem quando Judá está em pecado. Tom realista. |
2 Reis 18:17–19:37 / Isaías 36–37 | O anjo de YHWH mata 185 mil; Senaqueribe recua. | Núcleo antigo (tradições de Isaías, séc. VIII a.C.), edição final no exílio (séc. VI a.C.) | Exaltar Jerusalém como invencível, protegida por YHWH. |
2 Crônicas 32 | Ignora o tributo; apenas vitória milagrosa. | Redação cronista (pós-exílio, séc. IV–III a.C.) | Propaganda religiosa para reforçar a identidade judaíta restaurada. |
Prisma de Senaqueribe | Ezequias cercado “como um pássaro”; lista de tributos. | C. 691 a.C. (contemporâneo ao evento). | Propaganda imperial assíria: engrandecer o rei, sem admitir falhas. |
Conclusão: história ou teologia?
O cerco de Jerusalém no reinado de Ezequias nos revela como o passado foi constantemente reinterpretado:
- Historicamente, Ezequias pagou tributo para salvar sua cidade.
- Teologicamente, os redatores bíblicos transformaram a derrota em vitória, exaltando a proteção de YHWH.
- Politicamente, cada versão serviu a um propósito: os assírios para glorificar seu império, os cronistas judaítas para manter a fé e a esperança da comunidade.
O episódio mostra que a Bíblia não é um registro histórico neutro, mas uma construção literária e ideológica. O mesmo evento foi contado e recontado ao sabor das necessidades de cada época.
Sugestões de leitura
- Finkelstein, I. & Silberman, N.A. A Bíblia Desenterrada.
- Cogan, M. 2 Kings: A New Translation with Introduction and Commentary.
- Grabbe, L. Ancient Israel: What Do We Know and How Do We Know It?
- Sobre os 185 mil assirios