A Circuncisão com Pedra no Êxodo: Uma Interpolação Tardia?

Introdução
Poucos textos bíblicos são tão enigmáticos quanto Êxodo 4:24-26, onde Zípora, esposa de Moisés, realiza uma circuncisão de emergência usando uma pedra afiada e toca os pés de Moisés ou de Deus com o prepúcio do filho. Essa cena estranha levanta inúmeras questões: por que usar uma pedra quando já existiam instrumentos metálicos? Por que esse detalhe aparece de forma desconexa no relato? E qual o objetivo literário dessa passagem? Neste artigo, exploraremos as evidências literárias, arqueológicas e históricas que sugerem que este trecho seja uma interpolação tardia, inserida no texto para reforçar a centralidade da circuncisão na identidade israelita.
O Texto Bíblico e o Problema Literário
Êxodo 4:24-26:
“Durante a viagem, num lugar onde passaram a noite, o SENHOR foi ao encontro de Moisés e procurou matá-lo. Mas Zípora pegou uma pedra afiada, cortou o prepúcio de seu filho e tocou os pés de Moisés com ele, dizendo: ‘Você é para mim um marido de sangue’. Então o SENHOR o deixou em paz.”
Pontos enigmáticos:
- O motivo da ira de Deus contra Moisés não é explicado.
- Zípora realiza o ato e não Moisés, quebrando a lógica patriarcal do rito.
- A expressão “marido de sangue” não aparece em nenhum outro contexto.
- A utilização de pedra afiada (sílex) é anacrônica para o período em que se situa a narrativa.
Essas características sugerem um texto estranho, possivelmente encaixado por editores sacerdotais posteriores.
O Sílex e a Circuncisão em Povos Antigos
A nota de rodapé de algumas traduções em Êxodo 4:25 indica “faca de pederneira”, traduzindo o hebraico צֹר (ṣōr), que se refere a sílex.
Evidências arqueológicas:
- Ferramentas de sílex eram usadas desde o Neolítico (c. 6000 AEC) para rituais de circuncisão no Oriente Próximo e no Norte da África.
- Um dos registros mais antigos está na Tumba de Ankhmahor (c. 2400 AEC, Saqqara, Egito), mostrando circuncisão possivelmente realizada com lâmina de pedra.
- Mesmo após a Idade dos Metais, o uso ritual do sílex persistiu em práticas religiosas como símbolo de “pureza arcaica”.
Josué 5:2-3
Outro eco desse arcaísmo aparece em Josué:
“Faze facas de pederneira e circuncida de novo os filhos de Israel.”
Isso mostra que a tradição sacerdotal fez questão de manter o detalhe “arcaizante”, reforçando a antiguidade e legitimidade do rito.
A Linha do Tempo da Circuncisão com Sílex
- c. 6000 AEC – Circuncisão ritual com lâmina de pedra em culturas neolíticas do Oriente Próximo e África.
- 4026 AEC – Data mítica atribuída pela Torre de Vigia para a criação de Adão (um marco religioso, não histórico).
- c. 2400 AEC – Registro da circuncisão no Egito (Tumba de Ankhmahor).
- c. 1300 AEC – Tradição do Êxodo: referência a faca de pederneira, mesmo já existindo ferramentas de bronze.
- c. 1000 AEC – Idade do Ferro em Israel, mas sílex ainda usado em ritos simbólicos.
- séc. VI–V AEC – Redação sacerdotal (P) no pós-exílio babilônico: circuncisão reforçada como sinal de aliança (Gênesis 17).
Interpolação Tardia e Montagem do Texto Bíblico
A cena de Êxodo 4 é muitas vezes considerada um fragmento independente ou uma inserção redacional. A escola histórico-crítica aponta que:
- O Pentateuco é resultado de diferentes tradições (J, E, P, D), compiladas após o Exílio da Babilônia (séc. VI–V AEC).
- O autor sacerdotal (P) tinha interesse em centralizar a circuncisão como sinal de identidade exclusiva de Israel.
- Inserir um episódio enigmático no início da missão de Moisés reforçava a mensagem de que sem circuncisão não há proteção de Deus.
Assim, o detalhe do uso de pedra funciona como um eco arcaico, para dar peso e antiguidade a uma prática que, na verdade, foi ressignificada no período pós-exílico.
Conclusão
O episódio de Zípora circuncidando com pedra não é apenas uma curiosidade bíblica. Ele é um espelho do processo de montagem da Bíblia, revelando:
- Arcaísmos literários preservados artificialmente (uso de sílex).
- Intervenção sacerdotal pós-exílica para reforçar a circuncisão como identidade.
- A clara evidência de que a Bíblia não é uma “palavra pura de Deus”, mas um mosaico de tradições, inserções e manipulações teológicas.
Leituras Recomendadas
- Friedman, Richard E. Who Wrote the Bible? (HarperOne, 1997).
- Gmirkin, Russell. Berossus and Genesis, Manetho and Exodus (Bloomsbury, 2006).
- Hendel, Ronald. The Book of Genesis: A Biography (Princeton University Press, 2013).
- Jastrow, Morris. The Religion of Babylonia and Assyria (1905).
- Walton, John H. Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament (Baker Academic, 2006).
- Publicações da Torre de Vigia sobre cronologia (para contraste crítico, especialmente sobre 4026 AEC).