Uma Genealogia para Maria? A Gênese de Mais um Remendo Bíblico

📜 Contradição clara. Explicação inventada. Doutrina reciclada. Assim podemos resumir o dilema das genealogias de Jesus. Poucas passagens expõem tão bem a natureza remendada da Bíblia quanto o embaraço criado por Mateus e Lucas ao tentarem provar que Jesus era descendente de Davi por meio de José — o mesmo José que, segundo os próprios evangelhos, não teve nenhuma participação biológica no nascimento de Jesus.
Então, de onde veio a ideia de que uma das genealogias era na verdade de Maria? E por que as Testemunhas de Jeová e outros grupos cristãos abraçaram essa hipótese com tanto entusiasmo?
Prepare-se para uma viagem pelas origens dessa teoria, o uso tático que as religiões fazem dela e por que, à luz da história e da arqueologia, tudo desmorona.
📖 O Problema: José tem dois pais?
Mateus 1:16 afirma:
“Jacó tornou-se pai de José, o marido de Maria, da qual nasceu Jesus.”
Lucas 3:23, por sua vez:
“Jesus […] era filho, como se pensava, de José, filho de Eli.”
Então quem era o pai de José? Jacó ou Eli?
A resposta honesta é: ninguém sabe.
Mas para escapar dessa contradição, apologistas inventaram uma saída criativa: talvez Lucas esteja listando a genealogia de Maria, e não de José.
🧩 De onde veio essa ideia?
Essa teoria não aparece em nenhum lugar na Bíblia. Lucas não menciona Maria em sua genealogia. Ele diz claramente que “José era filho de Eli”, sem ambiguidades.
A ideia de que Lucas escreveu a genealogia de Maria só surgiu séculos depois do nascimento do cristianismo. Eis a linha do tempo:
- ⛪ Século IV: O teólogo Aniano de Celeda (pouco conhecido) parece ser o primeiro a sugerir que Lucas descrevia a genealogia de Maria.
- ⛪ Século VIII: João Damasceno, importante teólogo bizantino, desenvolve a ideia com mais detalhes, dizendo que Jacó e Eli eram irmãos. Um teria morrido sem filhos e o outro se casou com a viúva (lei do levirato), gerando José. Assim, José teria dois pais: um legal e um biológico.
É uma explicação engenhosa — mas absolutamente especulativa. Não há nenhum texto antigo que confirme isso. Nem um manuscrito, nem uma tradição judaica ou cristã primitiva.

🧩 O caso de Sealtiel: um paralelo forçado
As Testemunhas de Jeová afirmam o seguinte:
“Sealtiel, que era filho de Jeconias, é alistado como ‘filho de Neri’.”
(cf. 1 Crônicas 3:17; Mateus 1:12 vs. Lucas 3:27)
Esse argumento tenta justificar a contradição em Lucas 3:23 — que chama José de “filho de Eli” — dizendo que, assim como Sealtiel, José era genro, e não filho biológico de Eli.
Mas esse paralelo se desfaz quando analisado com rigor:
📖 O que dizem as fontes bíblicas sobre Sealtiel?
- 1 Crônicas 3:17: “Os filhos de Jeconias: Assir, cujo filho foi Sealtiel.”
- Mateus 1:12: “Jeconias gerou a Salatiel (Sealtiel).”
- Lucas 3:27: “filho de Neri.”
🧠 Aqui temos uma clara contradição: Mateus e 1 Crônicas ligam Sealtiel a Jeconias, rei legítimo da linhagem davídica. Já Lucas o liga a Neri, que não aparece em nenhum outro lugar como pai de Sealtiel. Não há nenhuma base textual que diga que Sealtiel se casou com uma filha de Neri — isso é pura conjectura apologética.
🧠 “Filho de” como “genro de”: prática comum?
A expressão “filho de” no grego de Lucas 3 (υἱός τοῦ) segue uma forma repetitiva padronizada, listando antecessores do ponto de vista genealógico-paterno. Em NENHUM lugar da Bíblia a fórmula padrão de genealogia utiliza “filho de” como genro de alguém, a menos que haja um contexto narrativo que explique isso — o que não ocorre em Lucas.
Portanto, a tentativa de encaixar o termo “filho” como “genro” é um remendo doutrinário, não textual.
🧨 Conclusão: um caso de remendo teológico
A tentativa de usar Sealtiel como “precedente” para a interpretação de “genro” em Lucas 3:23 é:
- ❌ Sem base textual direta
- ❌ Contrária à prática genealógica judaica do século I
- ❌ Fundada em conjecturas tardias (século IV em diante)
- ❌ Uma tentativa desesperada de harmonizar contradições internas nos evangelhos
Essa argumentação é mais um exemplo de como a Bíblia foi costurada com retalhos teológicos e, ao longo dos séculos, interpretada de maneira forçada para encobrir discrepâncias.
🕍 O judaísmo do século I aceitava genealogias femininas?
Não. As genealogias no mundo judaico eram sempre patriarcais, passando de pai para filho. Apresentar uma mulher como elo principal de uma linhagem — sem mencioná-la explicitamente — é algo sem precedentes históricos ou culturais na literatura judaica do período.
Segundo o The Anchor Bible Dictionary:
“Não há exemplos conhecidos de genealogias judaicas antigas que passam por mulheres, especialmente quando há um homem mencionado como o descendente direto.”
Portanto, a ideia de que Lucas fez uma “genealogia de Maria” é incompatível com o contexto cultural e literário da época.
📚 O que dizem os estudiosos?
Teólogos e historiadores críticos são quase unânimes:
- Ambas as genealogias são tentativas independentes e conflitantes de mostrar que José era descendente de Davi.
- A genealogia de Mateus é simbólica, estruturada em 3 grupos de 14 gerações — provavelmente um jogo numérico com o nome “Davi” (DVD = 14 em hebraico).
- A genealogia de Lucas é mais longa e universalista, chegando até Adão(que claramente é um personagem mitológico!!!). Pode ter sido criada para tornar Jesus acessível a um público mais gentio.
🎙️ Bart Ehrman, renomado historiador do cristianismo primitivo, afirma:
“Lucas diz explicitamente que José era filho de Eli. Ele não diz que Eli era pai de Maria. Isso é uma reconstrução tardia feita para harmonizar dois relatos contraditórios.”
🧠 Como as Testemunhas de Jeová adotaram essa explicação?
As Testemunhas de Jeová, como outros grupos cristãos conservadores, herdam essa explicação tardia da tradição apologética, e a inserem em suas publicações como se fosse uma solução natural e bíblica.
No livro Estudo Perspicaz das Escrituras (volume 1, verbete “Genealogia de Jesus Cristo”), lemos:
“Mateus apresenta a genealogia legal por meio de José; Lucas apresenta a linha natural por meio de Maria, embora mencione José por ser o genro de Eli.”
O detalhe? Nada disso está na Bíblia. É um típico caso de doutrina construída para tapar buracos, o que se alinha ao padrão da Torre de Vigia de forjar coerência onde não há.
🏛️ Arqueologia, História e Exegese: nada sustenta a teoria
- 🧱 Nenhum artefato arqueológico comprova ou sugere que Maria fosse filha de alguém chamado Eli.
- 📜 Nenhum manuscrito antigo oferece uma genealogia alternativa de Maria.
- 📖 A exegese textual de Lucas indica claramente que ele está falando de José, não de Maria.
- 🕍 A tradição judaica rejeitaria uma genealogia que ignorasse completamente a figura masculina.
A conclusão inevitável é que a Bíblia contém duas genealogias contraditórias, e a tentativa de harmonizá-las criando uma linhagem materna é um artifício tardio, usado para preservar a ilusão de coerência.
📌 Conclusão: um evangelho com costuras visíveis
A contradição entre Mateus e Lucas mostra o que muitos religiosos tentam esconder: a Bíblia é uma colcha de retalhos feita por autores diferentes, com agendas distintas, tentando resolver problemas teológicos da sua época.
Quando essas agendas se chocam — como no caso das genealogias — surgem os “remendos doutrinários”, criados séculos depois, sem base histórica, cultural ou textual.
E mesmo assim, grupos como as Testemunhas de Jeová continuam a ensinar essas soluções fabricadas como se fossem parte integrante da revelação divina. Só que agora você sabe: não são.
📚 Leitura recomendada:
- Bart Ehrman – Jesus, Interrupted
- Raymond Brown – The Birth of the Messiah
- John Dominic Crossan – The Birth of Christianity
- The Anchor Bible Dictionary – verbete “Genealogy”
CONTRADIÇÕES DA BÍBLIA, JOSÉ PAI DE JESUS É FILHO DE JACÓ OU ELI?: https://www.youtube.com/watch?v=jwWvcmxWU_4&t=643s