🪡 Mortos que se levantam antes de Jesus?

Mateus 27:51-53 e o remendo teológico que escancara a costura da Bíblia
✒️ Introdução
Imagine o seguinte: Jesus morre na cruz, e de repente… túmulos se abrem, mortos ressuscitam e caminham pelas ruas de Jerusalém, sendo vistos por “muitos”. Um milagre escatológico? Uma zombaria dos mortos-vivos no meio da Páscoa? Uma ressurreição coletiva antes da ressurreição oficial do próprio Cristo?
Pois é exatamente isso que Mateus 27:51-53 relata — e ninguém mais nos Evangelhos parece ter notado. Nem Marcos. Nem Lucas. Nem João. Nem Paulo. Nem Atos. Nem qualquer outra fonte cristã primitiva.
Neste post, vamos mostrar por que esse trecho é, muito provavelmente, um enxerto teológico improvisado, e como ele revela a costura humana e doutrinária da Bíblia — longe de qualquer “inspiração divina”. Prepare-se para descosturar essa colcha de retalhos.
📖 O texto em questão
Mateus 27:51-53 – Tradução literal do grego:
“E eis que o véu do santuário se rasgou em duas partes de cima a baixo;
e a terra tremeu, e as rochas se fenderam;
e os túmulos se abriram, e muitos corpos dos santos que dormiam foram ressuscitados;
e saindo dos túmulos, depois da sua ressurreição, entraram na cidade santa e foram vistos por muitos.”
Essa sequência dramática acompanha a morte de Jesus. Mas a frase “depois da sua ressurreição” parece surgir do nada, como uma costura improvisada.
🧠 A gramática que entrega o problema
Vamos analisar os principais termos:
Palavra grega | Tradução | Implicação |
---|---|---|
σώματα (sōmata) | corpos | Ressurreição física, não visão |
ἠγέρθησαν (ēgerthēsan) | foram ressuscitados | Mesmo verbo usado para Jesus e Lázaro |
ἐνεφανίσθησαν (enefanísthēsan) | apareceram, foram vistos | Aparição visível, não simbólica |
μετὰ τὴν ἔγερσιν αὐτοῦ | depois da ressurreição dele | Interpolação estranha entre verbos sequenciais |
🔍 Essa última expressão quebra a fluidez do texto grego, o que pode indicar que ela foi *inserida posteriormente para harmonizar um problema doutrinário grave: Jesus não seria mais o “primeiro” a ressuscitar.
🧾 O problema teológico
A tradição cristã afirma que Jesus foi o primeiro a ressuscitar para nunca mais morrer. Mas essa passagem de Mateus joga isso no chão:
- 1 Coríntios 15:20 — “Cristo, as primícias dos que dormem.”
- Colossenses 1:18 — “Ele é o primogênito dentre os mortos.”
- Atos 26:23 — “O Cristo… seria o primeiro a ressuscitar dentre os mortos.”
Se os “santos” de Mateus ressuscitaram no momento da morte de Jesus, então ele não é mais o primeiro. Isso causaria um rombo doutrinário. A solução? Inserir discretamente a frase “depois da ressurreição dele” — um remendo teológico costurado em plena narrativa.
📚 O silêncio ensurdecedor
Algo tão espetacular como mortos andando em Jerusalém deveria ser comentado em todos os cantos. Mas veja:
- Lucas, João, Marcos — silêncio total
- Atos dos Apóstolos — nem uma linha
- Epístolas de Paulo — nenhuma menção
- Pais da Igreja (Justino, Irineu, Orígenes) — embaraço ou silêncio constrangedor
Como ninguém mais se referiu a um evento tão impactante? Porque provavelmente não aconteceu, e era apenas um discurso teológico-literário simbólico, que depois foi tensionado pelas novas doutrinas cristãs emergentes.
🔥 As costuras da Bíblia expostas
Essa passagem é um exemplo didático de como a Bíblia não é um livro divino perfeito, mas sim:
- Um compilado humano, cheio de vozes diferentes em conflito
- Um documento remendado, tentando harmonizar contradições doutrinárias
- Um produto da pressão histórica, teológica e política para manter a coesão
A inserção de “depois da ressurreição dele” é apenas um entre muitos remendos visíveis nas Escrituras — como os dois relatos irreconciliáveis do nascimento de Jesus (Mateus x Lucas), ou as divergências nas aparições pós-ressurreição (João x Marcos x Mateus).
📜 O que dizem os estudiosos
🔎 Raymond E. Brown (The Death of the Messiah):
“O relato dos santos ressuscitados é melhor entendido como um símbolo apocalíptico da inauguração do fim dos tempos.”
📚 Dale C. Allison (Matthew: A Shorter Commentary):
“A frase ‘depois da ressurreição dele’ parece uma tentativa teológica de contornar o problema das primícias da ressurreição.”
📖 Craig A. Evans (Word Biblical Commentary):
“A estrutura da frase sugere uma inserção redacional posterior, provavelmente motivada por preocupações cristológicas.”
💡 Conclusão
O relato dos mortos ressuscitando em Mateus 27:51-53 é mais do que bizarro — é revelador. Ele mostra, com clareza cirúrgica, que a Bíblia é um projeto humano cheio de costuras teológicas, onde remendos foram feitos às pressas para tapar buracos doutrinários.
Não é a “palavra perfeita de um Deus infalível”. É uma colcha de retalhos costurada ao longo de séculos por mãos humanas tentando manter a aparência de unidade.
📚 Leitura complementar
- Brown, R.E. The Death of the Messiah (1994)
- Allison, D.C. Matthew: A Shorter Commentary (2004)
- Ehrman, B. Jesus, Interrupted (2009)
- Crossan, J.D. The Birth of Christianity (1998)
- Pagels, E. The Gnostic Gospels (1979)