Ciro, o Ungido de Jeová… Antes de Nascer?

A Profecia de Isaías: Revelação divina ou redação pós-exílica?
“Ele é o meu pastor e cumprirá tudo o que me agrada, ao dizer de Jerusalém: ‘Ela será reconstruída’, e ao dizer do templo: ‘Seu alicerce será lançado.’ Assim diz Jeová a Ciro, seu ungido…”
— Isaías 44:28 – 45:1 (TNM)
As Testemunhas de Jeová afirmam que esse texto é uma profecia inspirada, feita pelo profeta Isaías por volta do século 8 a.C., antecipando com precisão o nome e a missão de Ciro, rei da Pérsia, que só surgiria mais de 150 anos depois.
Mas… será que esse texto foi realmente escrito antes de Ciro nascer?
⏳ O problema da data
A maior parte do livro de Isaías (capítulos 1–39) é atribuída ao profeta Isaías do século 8 a.C.. No entanto, os capítulos 40–66 são diferentes em estilo, vocabulário e contexto histórico, e muitos estudiosos os chamam de “Segundo Isaías” ou “Deutero-Isaías”.
Por quê?
Porque esses capítulos:
- Falam de Babilônia como se já tivesse destruído Jerusalém (evento que ocorreu em 586 a.C.);
- Tratam o cativeiro babilônico como uma realidade presente, e não uma profecia futura;
- Mencionam Ciro como libertador, algo que só faria sentido após 539 a.C., quando ele conquista a Babilônia e decreta a volta dos judeus (Esdras 1:1-4).
➡️ Ou seja, o contexto histórico do “Segundo Isaías” é o exílio, não o período anterior.
📜 Foi profecia ou redação histórica?
A hipótese mais aceita entre estudiosos seculares e muitos teólogos é que Isaías 40–55 foi escrito por um autor (ou autores) anônimos durante o exílio babilônico, no século 6 a.C., após Ciro já estar no cenário político.
Essa prática de colocar palavras na boca de profetas antigos era comum na Antiguidade, não com intenção de enganar, mas como uma forma de dar autoridade ao texto.
🤔 Mas por que isso importa?
Porque desmascara a ideia de que a Bíblia é um livro sem falhas, escrito por autores que viam o futuro como se estivessem lendo um jornal. A “profecia” sobre Ciro, longe de ser um milagre, pode ser entendida como um texto político e teológico posterior, que celebra o papel de Ciro como libertador — depois dos fatos terem acontecido.
📚 Curiosidades que confirmam a hipótese crítica
- Ciro também é chamado de “ungido” (messias) – Isaías 45:1
➤ Um rei pagão sendo chamado com o mesmo título usado para Davi e Jesus? Bastante revelador. - A menção explícita da reconstrução do Templo – Isaías 44:28
➤ Isso só faria sentido depois da destruição em 586 a.C., não 150 anos antes. - A Teologia do Segundo Isaías é diferente:
➤ Monoteísmo mais rígido, ideia de redenção nacional, foco na consolação — são temas que refletem o contexto do exílio e retorno, não do século 8 a.C.
📖 Textos para análise
- Isaías 44:28 – 45:4 – Profecia direta sobre Ciro.
- Esdras 1:1-4 – Decreto real de Ciro autorizando o retorno dos judeus.
- 2 Crônicas 36:22-23 – Confirma a ação de Ciro como libertador.
🧠 Conclusão: Milagre ou reescrita?
A ideia de que Isaías previu o nome de Ciro com mais de um século de antecedência exige fé cega. Já a análise textual, histórica e arqueológica mostra que a profecia provavelmente foi escrita após os eventos terem ocorrido — uma técnica comum na literatura religiosa antiga.
Isso não torna o texto menos interessante, mas desmonta a tentativa da Torre de Vigia de usá-lo como prova de inspiração sobrenatural.
🔍 Para se aprofundar
- “The Book of Isaiah: Chapters 40–66” – J. J. M. Roberts
- “Introduction to the Old Testament” – Raymond E. Brown
- “The Bible Unearthed” – Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman
- Documentário: Bible’s Buried Secrets – PBS/NOVA