A Construção do Cânon Bíblico Protestante: Uma Obra Humana com Influência de Marcião

A crença de que a Bíblia é um livro inspirado diretamente por Deus leva muitos cristãos a pensar que seu conteúdo sempre foi fixo e inquestionável. No entanto, a formação do cânon bíblico foi um longo processo decidido por homens ao longo dos séculos, em meio a disputas teológicas e históricas. Entre os fatores que impulsionaram esse processo, um dos mais importantes foi a influência do herege Marcião no século II. Este artigo explora como a Bíblia protestante atual foi formada, os concílios envolvidos e a influência de Marcião nesse contexto.
O Papel de Marcião na Definição do Cânon
Marcião de Sinope (c. 85–160 d.C.) foi um teólogo cristão que rejeitava o Antigo Testamento e fazia uma distinção radical entre o Deus criador de Israel (Demiurgo) e o Deus amoroso revelado por Jesus Cristo. Para sustentar sua visão, Marcião criou seu próprio cânon, aceitando apenas uma versão editada do Evangelho de Lucas e dez epístolas de Paulo, removendo passagens que ele considerava corrompidas pelo judaísmo.
Embora a Igreja tenha rejeitado Marcião como herege e o tenha excomungado em 144 d.C., sua tentativa de definir um conjunto exclusivo de Escrituras forçou os cristãos ortodoxos a responder e a começar a estabelecer um cânon mais oficial. Até então, não havia uma lista fixa de livros considerados sagrados no cristianismo.
O Processo de Definição do Cânon e os Concílios
Após Marcião, outros cristãos começaram a compilar listas de textos considerados inspirados, mas o consenso sobre quais livros deveriam ser incluídos levou séculos para ser alcançado. Diversos concílios e decisões influenciaram a formação do cânon bíblico:
- Concílio de Hipona (393 d.C.): Este concílio na cidade de Hipona, no Norte da África, estabeleceu uma lista de livros que, com poucas variações, se tornaria o cânon definitivo do cristianismo ocidental.
- Concílio de Cartago (397 d.C.): Confirmou a lista de Hipona e enviou uma recomendação ao bispo de Roma para ratificação.
- Concílio de Cartago (419 d.C.): Reafirmou a lista anterior e consolidou o reconhecimento dos 27 livros do Novo Testamento, os mesmos que aparecem nas Bíblias protestantes atuais.
Esses concílios foram dominados por líderes da Igreja, que tomaram decisões com base em tradições, teologia e necessidades institucionais. O consenso sobre o Novo Testamento demorou, e mesmo depois disso, debates sobre certos livros continuaram por séculos.
A Reforma Protestante e a Revisão do Cânon
O cânon aceito nos concílios de Hipona e Cartago incluía os livros chamados “deuterocanônicos” (ou “apócrifos” pelos protestantes), como Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruque e os acréscimos a Ester e Daniel. Esses livros estavam na Septuaginta, a versão grega do Antigo Testamento amplamente usada pelos primeiros cristãos.
No entanto, durante a Reforma Protestante no século XVI, Martinho Lutero questionou a inclusão desses livros, pois não estavam no cânon hebraico judaico. Em 1534, Lutero publicou uma Bíblia que relegava os deuterocanônicos a uma seção separada. O Concílio de Trento (1546), em resposta à Reforma, reafirmou a inclusão desses livros no cânon católico. Por outro lado, os protestantes passaram a adotar um cânon reduzido, que corresponde ao usado nas Bíblias protestantes modernas.
O Cânon Bíblico: Uma Construção Humana
A análise histórica mostra que o cânon bíblico protestante não foi determinado por uma revelação divina direta, mas sim por decisões humanas ao longo dos séculos. O impacto de Marcião forçou a Igreja a responder e a consolidar um conjunto de textos autorizados. Séculos depois, concílios e debates entre líderes e teólogos definiram a lista de livros aceitos. Finalmente, a Reforma Protestante revisou e reduziu esse cânon, resultando na Bíblia usada pelos protestantes hoje.
Compreender esse processo histórico desfaz o mito de que o cânon bíblico foi estabelecido de forma sobrenatural e imutável. Pelo contrário, ele é fruto de disputas, edições e decisões teológicas tomadas por homens ao longo da história.
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