El e Javé: Os Dois Deuses da Bíblia e a Formação do Monoteísmo Israelita

El e Javé: Os Dois Deuses da Bíblia e a Formação do Monoteísmo Israelita

A Bíblia Hebraica, especialmente o livro de Gênesis, contém vestígios de diferentes tradições religiosas que foram combinadas ao longo do tempo para formar a teologia monoteísta do judaísmo. Um dos aspectos mais intrigantes dessa fusão de crenças está na presença de dois nomes divinos distintos: Elohim e Javé (YHWH). Essa diferença aponta para a existência de dois deuses originalmente distintos que, por meio de um longo processo de assimilação cultural e teológica, foram unificados na figura do Deus único do judaísmo.

A Dupla Narrativa da Criação

Ao analisar os dois primeiros capítulos do Gênesis, notamos duas histórias da criação que diferem em estilo, sequência de eventos e até mesmo na identidade do Criador.

A Primeira Criação: Elohim e a Ordem Cósmica

No primeiro capítulo de Gênesis (1:1–2:3), Deus é chamado de Elohim, um termo que, curiosamente, é um plural da palavra “El”, que era o nome do deus supremo dos cananeus. Esse trecho, geralmente atribuído à fonte sacerdotal (P), apresenta um Deus transcendente, onipotente e distante, que cria o universo por meio de comandos verbais (“Haja luz!”). O processo de criação segue uma estrutura ordenada, com uma progressão lógica de elementos: primeiro a luz, depois o firmamento, a terra seca, os astros, os animais e, por fim, o homem e a mulher, criados simultaneamente à imagem de Deus.

Essa visão reflete um conceito mais abstrato e universalista da divindade, semelhante ao El dos cananeus, que era visto como o criador supremo do cosmos. Elohim é retratado como um arquiteto cósmico, que estabelece a ordem e a função de cada elemento do universo.

A Segunda Criação: Javé e a Relação Pessoal

Já no segundo capítulo (2:4–25), encontramos uma narrativa diferente. Aqui, o Criador é chamado de Javé Elohim (YHWH Elohim). Esse nome combina YHWH, o nome pessoal do Deus de Israel, com Elohim, sugerindo uma fusão entre duas tradições religiosas. Essa parte do texto, atribuída à fonte javista (J), apresenta um Deus mais antropomórfico e próximo de sua criação.

Diferente da primeira narrativa, onde a criação ocorre de maneira meticulosa e ordenada, aqui a sequência dos eventos é menos estruturada. Primeiro, Deus cria o homem (Adão) a partir do barro, depois molda as plantas e os animais e, por fim, forma a mulher (Eva) a partir da costela do homem. Esse Deus interage diretamente com suas criaturas, caminha pelo jardim do Éden e conversa com os humanos.

A diferença entre essas duas narrativas aponta para uma fusão de tradições. Enquanto Elohim remete a um conceito mais abstrato e universalista de divindade, Javé tem características mais tribais e relacionais, típicas de um deus protetor de um povo específico.

Javé e Sua Origem Edomita

Estudos arqueológicos e textuais indicam que Javé pode ter sido originalmente um deus do sul, vindo de Edom ou Midian. Textos antigos, como Deuteronômio 33:2 e Juízes 5:4, mencionam que Javé veio de Seir e de Temã, regiões localizadas ao sul de Canaã.

Essa teoria é sustentada por estudiosos como Israel Finkelstein e Thomas Römer, que sugerem que o culto a Javé foi introduzido em Israel por meio de tribos nômades que migraram do sul. Javé pode ter sido inicialmente um deus guerreiro, cultuado por clãs que habitavam a região do deserto, e posteriormente assimilado pelos israelitas.

A Unificação de El e Javé

Com o tempo, os israelitas passaram por um processo de sincretismo religioso. À medida que o reino de Israel se consolidava, houve um esforço para unificar as diferentes tradições religiosas. Isso resultou na fusão de El e Javé em uma única divindade. Esse processo pode ser observado em textos como Êxodo 6:3, onde Deus declara: “Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como El Shaddai, mas pelo meu nome Javé não fui conhecido por eles.” Esse versículo reflete uma tentativa de harmonizar as diferentes tradições, sugerindo que El e Javé eram, na verdade, a mesma divindade.

No período do exílio babilônico (século VI a.C.), os escribas judeus reformularam sua teologia para enfatizar a crença em um único Deus. Foi nesse contexto que o monoteísmo israelita se consolidou, eliminando a multiplicidade de divindades e estabelecendo Javé como o único Deus verdadeiro.

Conclusão

A Bíblia Hebraica preserva evidências de um passado em que os israelitas cultuavam diferentes deuses. A fusão de El e Javé reflete um processo histórico e teológico que culminou no monoteísmo judaico. Esse desenvolvimento não ocorreu de maneira repentina, mas foi resultado de séculos de mudanças culturais, interações com outros povos e a necessidade de consolidar uma identidade religiosa única.

Ao compreender essa evolução, podemos ver como a religião reflete a adaptação e transformação das crenças humanas ao longo do tempo. O Deus único que conhecemos hoje é, na verdade, o resultado de uma longa jornada de fusão de divindades e narrativas distintas, moldadas pela história e pelas necessidades de um povo em constante transformação.

admin

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *