Deuteronômio 32:8-9 e a Assembleia Divina: YHWH Recebe Israel de El?

Deuteronômio 32:8-9 e a Assembleia Divina: YHWH Recebe Israel de El?

A passagem de Deuteronômio 32:8-9 é um dos textos mais intrigantes da Bíblia Hebraica porque sugere a existência de uma “assembleia divina” na qual as nações são distribuídas entre diferentes divindades, incluindo YHWH. Esse conceito levanta questões sobre o desenvolvimento do monoteísmo em Israel e as influências das crenças cananeias na teologia hebraica.

As Variantes Textuais: O que Realmente Diz o Texto?

A interpretação de Deuteronômio 32:8-9 varia conforme a tradição textual utilizada. Vejamos algumas traduções relevantes:

Tradução do Novo Mundo (Testemunhas de Jeová)

“Quando o Altíssimo deu às nações a sua herança,Quando separou os filhos de Adão,Ele estabeleceu os limites dos povosCom base no número dos filhos de Israel.Porque a porção de Jeová é o seu povo;Jacó é o lote da sua herança.”

Essa versão segue o Texto Massorético, que afirma que a divisão das nações foi feita “com base no número dos filhos de Israel”, sugerindo um vínculo direto entre a criação das nações e o papel especial de Israel na história divina.

Bíblia de Jerusalém (Católica)

“Quando o Altíssimo repartia as nações,quando dispersava os filhos de Adão,fixou as fronteiras dos povosconforme o número dos filhos de Deus.Mas a porção de Iahweh foi o seu povo,Jacó, a parte de sua herança.”

Aqui, a expressão “filhos de Deus” (בני אלהים, bənê ʾĒlîm) aparece no lugar de “filhos de Israel”. Essa leitura se baseia nos Manuscritos do Mar Morto e na Septuaginta (versão grega da Bíblia hebraica), sugerindo que a divisão das nações foi feita com base nos “filhos de Deus”, ou seja, nos seres celestiais que governavam diferentes povos.

O que Isso Significa?

A diferença entre as versões indica uma alteração teológica posterior no Texto Massorético, possivelmente para evitar qualquer associação com um politeísmo original. O texto mais antigo (Manuscritos do Mar Morto e Septuaginta) implica que YHWH era originalmente apenas um entre vários “filhos de Deus” e recebeu Israel como sua porção.

Assembleia Divina e a Influência Cananeia

A ideia de uma assembleia divina onde diferentes deuses governam nações tem paralelos na mitologia cananeia. O deus El, a divindade suprema do panteão cananeu, era visto como o chefe dessa assembleia, delegando responsabilidades aos seus filhos, incluindo Baal, Mot e outros deuses.

Esse contexto sugere que a crença inicial dos hebreus não era totalmente monoteísta, mas henoteísta — a ideia de que um deus supremo existe, mas outros deuses também possuem poder e autoridade sobre diferentes povos.

Evidências em Outros Textos

Outros trechos da Bíblia também fazem referência a essa assembleia divina:

  • Salmo 82:1: “Deus está de pé na assembleia divina; no meio dos deuses, ele julga.”
  • Jó 1:6: “Certo dia, os filhos de Deus vieram apresentar-se perante Jeová, e Satanás veio também entre eles.”
  • Daniel 10:20-21: Sugere que cada nação tem um príncipe celestial que a representa.

Esses textos reforçam a ideia de que, no pensamento hebraico antigo, havia uma hierarquia celestial, e YHWH era inicialmente uma das divindades que compunham essa estrutura.

A Evolução para o Monoteísmo

Com o tempo, Israel desenvolveu uma teologia mais monoteísta, onde YHWH passou a ser visto não apenas como o deus de Israel, mas como o único Deus verdadeiro. Essa transição é observada claramente em textos como Isaías 45:5:

“Eu sou Jeová, e não há nenhum outro. Fora de mim não há Deus.”

A substituição de “filhos de Deus” por “filhos de Israel” em Deuteronômio 32:8 no Texto Massorético é um indício dessa mudança teológica, provavelmente feita pelos escribas judeus em um momento posterior para enfatizar o monoteísmo absoluto.

Conclusão

Deuteronômio 32:8-9 é um exemplo fascinante de como os textos bíblicos refletem a evolução das crenças religiosas ao longo do tempo. A leitura mais antiga sugere que YHWH era originalmente parte de um panteão de deuses subordinados a El, recebendo Israel como sua porção. Com a evolução teológica, os escribas alteraram o texto para reforçar a ideia de que YHWH sempre foi o único Deus verdadeiro.

Esse estudo mostra como a arqueologia e a crítica textual podem nos ajudar a entender melhor as camadas históricas por trás da teologia bíblica. O que achou dessa análise? Deixe seu comentário abaixo!

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